Ensolarado dia de inverno.
Dias em que o sol surge mas parece ligado numa voltagem menor. Menos brilho. Menos calor. Numa cadeira de madeira na varanda do décimo segundo andar, a moça observa a rua com um misto de tédio e interesse pelo mundano e desconhecido.
Seus cabelos negros esvoaçam com o vento, mas ela não liga.
Apenas com uma fina blusa preta, ela não se importa com o frio. Sua pele branca nem se arrepia com o vento.
O frio não a toca.
Um óculos de sol de grandes armações esconde os olhos da moça e é impossível dizer qual o objeto de sua atenção.
Sua cabeça pende languidamente em direção à rua.
Uma rua qualquer, no centro da cidade, da qual ela nem mesmo sabe o nome. Carros, motocicletas, ônibus, homens, mulheres, cachorros e crianças passam apressados de um lado para outro, mas ela apenas observa a todos.
A pressa não a toca e todos os outros não a observam.
Na esquina, um homem com um labrador de pêlo claro na coleira espera o semáforo abrir. O cão agitado fareja tudo ao alcance, parando por alguns segundos na placa de metal indicando o estacionamento proibido. A seu lado, uma moça também espera o sinal para atravessar a rua, com uma das mãos segura um celular contra o rosto, tentando com dificuldade ouvir o que dizem do outro lado da linha.
Realmente, é uma rua movimentada.
A outra mão da moça busca incansavelmente algo dentro da bolsa. Incrível a quantidade de objetos que pode caber dentro de uma bolsa de mulher. Mas não, a moça da varanda não deve estar olhando para eles, sua cabeça se virou lentamente e parece encarar dois homens no portão do prédio em frente, descarregando um refrigerador novinho, ainda dentro das caixas de papelão. Parece haver um problema.
Os homens discutem e um deles indica um enorme rombo na lateral da caixa. Por sorte, a altura da varanda do apartamento impede a moça de ouvir os gritos de ambos, ainda bem.
Não quer mais ouvir gritos.
De repente, ela parece se cansar de observar a rua.
Volta-se para a outra cadeira da varanda e pega uma bolsa preta de fechos prateados. Em poucos segundos, um maço de Carlton verde e um isqueiro materializam-se em suas mãos.
O vento sopra, frio, e apaga seu cigarro.
Duas, três, seis tentativas.
Desiste.
Com raiva joga tudo dentro da bolsa novamente e passa pela porta de vidro aberta entrando no hall do apartamento.
Tudo ali parece de última geração.
Tv de LCD de inúmeras polegadas grudada na parede, ao lado de um aquário quase tão grande, com cinco ou seis peixes dourados, flutuando de um lado para outro.
De frente para a tv, um grande sofá cinza de quatro lugares exibe as marcas da noite anterior. Uma garrafa vazia de vinho está tombada e uma pequena mancha do líquido escuro espalhada sobre uma das almofadas. Ao lado um celular está arrebentado, seu visor estilhaçado e algumas das teclas jazem ao redor.
Ela automaticamente agarra a bolsa novamente e retira o isqueiro e um cigarro. Acende-o e sente-se aliviada pelo vento ter ficado lá fora.
Senta-se então num canto do sofá, longe do celular e da garrafa vazia de vinho, encarando a tv desligada.
Um vulto aparece no televisor.
Sobressaltada ela se vira. E o tal vulto surge como um homem na entrada do corredor.
Os cabelos dessarumados, uma camiseta velha, um corte do lado esquerdo do rosto. Recente, muito recente.
Seus claros olhos castanhos encaram a moça, passando dos óculos escuros para o cigarro em sua mão.
"Importa-se de não fumar aqui dentro?", diz ele rispidamente.
"Está ventando muito lá fora e... e não consigo acendê-lo lá..." diz ela apressada, visivelmente assustada e resignada.
"Então não fume.", ele atravessa a sala e entra na cozinha, saindo das vistas da moça. Enquanto isso ela apaga o cigarro num cinzeiro sobre a mesa de centro da sala.
"Definitivamente é o que mais odeio em você", resmunga ele da cozinha. Sons de metais entrechocando-se chegam da cozinha mas a moça nada diz.
"Não sei como suportei por tanto tempo...", continua ele zangado, "Fumaça, o tempo todo..."
Algo de vidro se quebra na cozinha e um palavrão ecoa na cozinha.
"Fê... precisamos...", diz a moça parecendo ter reunido enorme coragem.
"Não, não! Não precisamos conversar porcaria nenhuma!", interrompe ele vindo da cozinha e parando sobre o portal. "Já dissemos tudo ontem à noite. Tudo!"
"Fê, não...", avança ela, com a voz já chorosa.
"Acho que já tá na hora de você ir embora", retruca ele impedindo-a de abraçá-lo.
"Chega, Cecília, chega!"
Cecília é afastada e encosta na parede, já chorando, apertando a bolsa contra o peito.
Os óculos impedem que seus olhos sejam vistos, mas as lágrimas escorrem por seu rosto, vermelho e úmido.
"Acabou, Cecília.", repete ele encostado ao portal. "Acabou no momento em que você começou a desconfiar de mim. Não deixa tudo mais difícil".
Ele morde o lábio superior e volta, ligeiramente hesitante, para a cozinha. Com uma vassoura ajunta os cacos de vidro espalhados pelo assoalho da cozinha.
Dois minutos depois (ou seriam vinte?) a porta do apartamento se abre ao longe, fazendo um leve ruído que ele mal perceberia se não estivesse prestando atenção em cada som vindo da sala.
Apesar de sua respiração ofegante, ele se esforça em ouvir algo mais.
Um soluço, um suspiro ou mesmo mais um choro. Mas nada mais acontece.
Nem mesmo o ruído da porta se batendo.
15.1.10
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3 comentários:
Triste!
MUito triste.
Mas ótimo texto. Bem escrito, acho difícil acompanhar esse estilo de diálogo com aspas, mas está muito bom isso aqui.
Obrigado pela visita ao meu blog.
E quando ao que você perguntou lá: não, não é um texto avulso. Há outras crônicas à respeito do Noé.
Até mais.
que grand....depois eu volto pra ler tudo
triste, mas mt mt bem feito.
Parabéns. bejos.
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