6.12.08

Sonho [?]

Poucos dias para o natal. As pessoas da faculdade começam a se despedir e as vésperas de um momento de ausência de pessoas se inicia. É um período de reflexão mesmo, querendo ou não, todo mundo faz ao menos uma reflexão sobre o ano que passou. Fato.
:]

Eis que um dia, semanas antes do natal, me encontro sentado em frente ao computador, já à noite e estou sozinho em casa. De repente, escuto um barulho vindo do corredor. Por um momento, penso que é minha imaginação, afinal, já estou muito sonolento. Mas o barulho se repete, e depois, e depois. Definitivamente não é minha imaginação.
Dirijo-me até o corredor escuro e vejo uma pequena luz pulsando no chão, perto da porta da cozinha, no fim do corredor. Absurdamente curioso como sou, adianto-me até lá e paraliso de surpresa.
- Mas que p...? - começo eu.
- Olhe o palavreado, garoto.
No pé da porta, um pequeno boneco de lego segurava uma tocha com fogo [igualmente de lego] e estava a me fitar. Tinha o corpo azul e as calças verdes, um cabelo preto liso e "redondo" na cabeça. Os braços, as pernas e a cabeça eram do costumeiro amarelo e seu rosto era o mais básico encontrado nesses bonecos: os olhos eram apenas pontinhos, e a boca, uma simples curva, que assim mesmo se abria ao falar.
- O que você está fazendo aqui? - perguntei eu atônito.
- Ora, é Natal. - respondeu o 'outro' com a maior naturalidade, como se tudo fizesse sentido - E temos assuntos a tratar. Sente-se.
Era bizarro. Obedeci ao pedido do lego e sentei-me no chão, ainda encarando-o, desconfiado de ser uma alucinação.
- Como você...?
- Não temos tempo pra perguntas triviais. - cortou-me o boneco - Sabe por que estou aqui?
- Pra me convencer que realmente tenho problemas psicológicos? - não consigo mesmo segurar minha língua, mesmo nas situações mais tensas.
- Não, seu idiota. Sou seu espírito do Natal e to aqui pra te fazer pensar em umas coisinhas.
Ele deu uma risada estranha. A mesma risada 'do mal' que costumo dar quando penso em coisas não-boas. Me surpreendi: era a minha própria risada. Eu devia estar com muito sono pra estar naquele nível de alucinação.
- Eu preciso realmente dormir. - eu disse, começando a levantar.
- Cala a boca. - disse o outro - E olhe pra cá.
No momento em que olhei para ele, o "fogo" em sua "tocha" pulou e explodiu no corredor. Fiquei parcialmente cego, e comecei a xingar o maldito boneco.
- Calma, calma... - disse o lego, claramente se divertindo com a situação - Já pode abrir os olhos.
E abri. No mesmo momento preferi ficar de olhos fechados.

Estava num lugar que, sem dúvida, não era o corredor perto da cozinha. Havia um céu muito azul e totalmente sem nuvens com um sol bizarramente amarelo no horizonte. Tudo parecia emitir luz. Estávamos, eu e o lego, num imenso chão verde feito de... lego. Eu, com certeza, precisava dormir.
- Onde é que...?
- Você está no seu passado, garoto. - disse o outro displicentemente.
- Como é que...?
- Só olhe. - ele disse apontando para um monte de peças de lego empilhadas num canto do extenso campo verde.
Um garoto pequeno, de uns oito ou nove anos corria acompanhado de [absurdos] dois bonecos de lego da mesma altura que ele. Reconheci-os imediatamente.
Um dos bonecos tinha uma armadura vermelha e uma capa amarela, tinha um elmo preto com dois dragões esculpidos e segurava em uma das mãos uma espada cinza.
O outro boneco usava uma túnica azul e um chapéu de mago absurdamente grande e provavelmente também pesado, pois corria com dificuldade e com uma das mãos impedia o chapéu de sair voando.
O garoto, nem preciso dizer, com certeza era meu "eu infante". Exatamente como eu, só que mais branquinho, mais bonitinho, mais baixinho, mais japinha, com cabelo lisinho e sem óculos.
Meu "eu infante" corria com os dois bonecos e com algumas peças do chão montava coisas num tempo absurdo. Saíam carros, casas, cavalos, cadeiras e muitas outras coisas. Mas não devia ser aquilo que eu devia estar observando, porque o lego ao meu lado já se dirigia para um pequeno morro ao lado do campo verde de lego.
- Olhe lá embaixo. A casa azul é a sua. - disse ele apontando para o fundo do vale.
E olhei. Lá embaixo havia uma pequena vila, formada por casinhas, todas feitas de lego. Podia-se ver os pequenos "moradores" das casas andando pela cidade e fazendo o que quaisquer pessoas normais faziam no dia-a-dia. Inúmeros bonecos de lego estavam ali. E um a um, fui reconhecendo-os, relembrando de tempos já distantes, mas não tão distantes assim.
- Esse é seu passado. - disse o lego ao meu lado - Percebe?
Eu não sabia onde ele queria chegar.
- Você era único ali embaixo. Era seu refúgio particular. A infância, um refúgio imortal se vivida do modo correto. Só havia você de garoto, e todos sabiam disso. Os únicos que viviam com vocês éramos nós, os legos. Mas nada dura pra sempre...
O boneco apontou para o céu. Nuvens escuras haviam se formado e do meio delas podia-se ver pequenos pontos pretos.
- Você era único aqui. O mundo era seu, mas isso mudou.
- Que são aqueles pontos pretos?
- São as pessoas. Seus iguais. Humanos. Surgem na vida como se tivessem caído do céu. Surgem do nada e causam impacto no primeiro momento que tocam a superfície de sua vida.
Eram mesmo pessoas. À medida que se aproximavam do chão, eu começava a reconhecer os rostos. Amigos, parentes, professoras, conhecidos... muitas pessoas que às vezes já conhecia há tempos, outros que conhecia há pouco.
- Já chega. - disse o pequeno lego segurando o "fogo" em uma das mãos – Feche os olhos.

Obedeci novamente. E quando reabri os olhos, percebi que estávamos no mesmo morro, mas muita coisa estava diferente. O céu tinha um tom cinza e estava cheio de nuvens pesadas roxo-acinzentadas, alguns pontos pretos voavam pelos céus e logo percebi que eram humanos.
- E agora? - perguntei.
- Agora, o presente. - disse-me, apontando para onde outrora estava a vila dos legos - Esse você conhece muito bem.
Lá embaixo, agora existiam apenas ruínas. Alguns legos podiam ser vistos, abrigados entre as paredes ainda de pé e andavam furtivamente, à sombra. Um único edifício erguia-se imponente num canto da vila, um prédio metálico, quadrado e sem portas. Havia apenas um janela no andar mais alto.
Olhando para os outros lados, o mundo parece estar perecendo. A maioria das árvores e outros elementos da paisagem ainda estão lá, mas sofrendo com a atual situação. Ao redor, diversos humanos brigam entre si. Diversos humanos brigam com legos. Era uma baderna.
- Não estou entendendo. - eu disse - O que está havendo?
- Os humanos chegaram e tudo isso aconteceu. Seu "infante" se transformara. Com o poder dos legos e o conhecimento dos homens proclamara-se dono desse mundo. Executara e prendera opositores, torturara diversos humanos e legos, isolara-se em sua torre de metal. Ele não confia nos humanos por serem imprevisíveis e não confia nos legos por serem ingênuos. Ele está sozinho lá. - ele terminou apontando para a torre de metal, solitária, próxima da vila em ruínas - Olhe para a torre e verá o mal que perpassou por seu coração.
Mais uma vez olhei para a torre de metal, e incrustado em suas paredes externas, podiam-se ver rostos de pessoas que sei e que sinto, terem me magoado, e vice-versa.
- Que houve com elas? - perguntei, com um certo receio.
- Você alimentou seu ódio, a vingança. E esse mal elevou essa torre. Seu mal concentra-se ali. Mas como só há uma janela, ele se espalha lentamente, mas quer sair.
Olho novamente para a torre e encaro novamente aqueles rostos. Algo vibra em meu peito e imagino o que está por vir.
- Hora de...
- Fechar os olhos. – cortei a fala do lego, encaro-o sorrindo. Isso já me vale qualquer alucinação.

O "fogo" explode mais uma vez e quando abro meus olhos vejo-me novamente sobre o morro, mas desta vez a paisagem é devastadora. O céu está muito escuro, trovões azuis cortam as nuvens e atingem o chão, iluminando a destruição na superfície.
Não se vê mais nenhum campo verde, nem árvores, nem vida. Uma espessa areia cinza se espalha por tudo, é um deserto.
Ao olhar para o fundo do vale, não consigo evitar soltar uma exclamação. A torre de metal está muito, mas muito mais alta. Não se consegue ver seu topo, perfurando as nuvens escuras lá em cima.
No entanto, agora, um portão imenso está aberto na entrada da torre. Meu olhar se dirige inevitavelmente para a entrada, onde um senhor já meio velho coloca tábuas de madeira, tentando escorar as paredes da torre que pareciam estar se envergando assustadoramente.
- O que aquele velho está fazendo? - pergunto sem me refrear.
- Por que não pergunta a si mesmo? – diz o lego, sério.
Meu olhar recai novamente sobre o velho arrastando madeiras e me percebo olhando para um espelho com uma difração de algumas décadas de diferença.
- Não pode ser... o que houve?
- O mal cresceu e venceu. - disse o lego, simplesmente – O mal embrenhou-se e tomou a vida de tudo. Todo o resto morreu e a torre elevou-se. O mal ficou liberto e começou a destruir tudo, inclusive suas próprias fundações. O mal não fez bem nem à si mesmo. E quando você percebeu tudo, já era tarde, e as "remediações" não fariam mais efeito e...
Um estrondo muito algo ecoou e ambos voltaram-se para o céu escuro. Um trovão azul surgira e atingira a torre de metal que começou a espatifar-se. Num breve olhar, vi o senhor tentando segurar as vigas de madeira no lugar, inútil tentativa.
A torre se desintegrava e devido à sua altura descomunal pedaços de metal voavam em todas direções...
- Abaixe-se, garoto! – gritou o lego, e quando me virei, vi uma viga de metal rodopiando, em nossa direção...


Abro os olhos e ergo a cabeça rapidamente. O coração acelerado e a respiração ofegante. Estou em meu quarto, na frente do computador. Já é noite e estou sozinho.
"Preciso dormir...", penso desesperadamente.
Eu disse que todos fazem, pelo menos, uma única reflexão da vida nessa época do ano.

2 comentários:

Anônimo disse...

Rapaz, admiro pessoas com o dom da escrita... Conforme lia seu 'sonho', fui tomado por todo tipo de sensação, desde a saudosa lembrança de meu tempo infante em deliciosas e descomprometidas brincadeiras com legos, até a dor no peito que dá lembrar dessas sementes de ódio que a gente vai cultivando enquanto cresce e vai subindo as paredes da torre de um modo imponentemente frágil...

neste trecho: "Olhe para a torre e verá o mal que perpassou por seu coração.", lembrei-me desta imagem da galeria do immortus (usei outra dele na minha postagem):
http://fc60.deviantart.com/images/i/2003/36/8/1/No_Love_Left_In_Me.jpg

Ainda estou pensando se faço meu balanço de Natal no blog... acho que esse meu novo vício responde por mim, rs.

E mesmo longe de vocês, da loucura da faculdade... quem disse que consigo dormir?

t+
;)

Anônimo disse...

Nossa!
Fiquei impressionado, belo conto cara! E me fazia ficar cada vez mais interessado e por dentro, pena que é "pequena".
Descreveu muito bem a sua vida, creio eu, e talvez seja essa a reflexão que tanto precisa.

Estou a lhe conhecer aos poucos, mas é isso aí cara! Não pode deixar aquele velho morrer daquela forma. Muito massa a história ser baseada em Lego, meu isntinto nerd me fez saudoso!

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